sábado, 2 de abril de 2016

Lagos bizarros, agonia e Paz

Reveillons em geral por mais diferentes que sejam quase sempre tem coisas em comum... Comemorar, abraçar as pessoas queridas a sua volta, planejar coisas pro novo ano e... Acordar tarde no dia 1º de Janeiro. Mas infelizmente não foi o que aconteceu. Fiquei imaginando como estaria Araújos. Primeiro de Janeiro é aniversário da cidade, desse vez, bem distante de mim.
Aeroporto de Djibouti

Naquele primeiro de Janeiro acordei com batidas fortes na porta do quarto, e no susto, abrindo o gerente do hotel balbuciando algo em árabe e apontando para a porta. Logo saquei que era sobre a equipe da excursão que ia fazer para o interior do Djibouti já estava me aguardando na porta. Mais que rapidamente amontoei tudo que estava fora da mochila o mais rápido que pude e partimos logo cedo saindo da capital. Julgo que não eram nem 6:30, mas já estávamos partindo, e eu sem café da manhã. Na vida fora de viagens, eu como sempre de 3 em 3 horas, malho todos os dias, e tento sempre fazer um “projeto boy magia” a cada semestre que sempre é quebrado quando estou viajando, já que em viagens sempre acabo não malhando nem comendo bem. Mas questões estéticas à parte, os primeiros dias de viagem são sempre complicados em relação à comida. Nem sempre eu posso comer na hora que quero, nem o tipo de nutriente que quero, visto que proteínas e fibras são difíceis de serem encontradas de forma fácil. E você sempre acaba comendo muito açúcar e gordura, querendo ou não. Mas pior do que comer mal é não comer (o que acontece frequentemente em viagens) e sorte minha que tinha comprado por curiosidade os biscoitos com nomes bizarros no dia anterior, esse foi bem desjejum do dia. Qualquer progresso de academia que eu porventura tenha ganho naquele semestre volta ao zero no fim da viagem, daí você quando você volta, volta a malhar e o ciclo começa novamente.

Região interiorana


O Destino era o Lac Abée, um lago com formações rochosas bizarras ao seu redor, lago este que metade é do Djibouti e metade da Etiópia. A lógica diria que se eu já estava na Etiópia, por que não ir diretamente por lá? Simplesmente porque é impossível, ou pelo menos extremamente difícil e perigoso, teria de cruzar um mega deserto por dias numa região perigosa, realmente não valia a pena. Além de tudo, o Djibouti não é um país particularmente cheio de atrações turísticas e o Lac Abée é certamente um lugar obrigatório pra quem vai ao país. Visitar o Lac Abée pelo Djibouti também não é nada fácil e barato. Depois que você sai da capital, o deserto logo vem, você passa por algumas regiões cheias de pedra, e o caminho do deserto não é particularmente interessante, mas fiquei surpreso quando vi MACACOS do deserto ali. Sim! Também fiquei surpreso. 
Macacos do deserto

Depois de um breve período de asfalto e um longo período de estrada de chão, a estrada acaba e você pensa que é o fim da linha. Mas nada. O 4x4 entra no meio do deserto e faz seu próprio caminho à partir dali, um leve medinho de imaginar ficar preso naquela imensidão de nada. O deserto naquela região é diferente do que imaginava, não tem muita areia. É basicamente um chão duro infértil. O carro para para algumas fotos naquela imensidão plana e sem obstáculos, e eu, com a criança que sou, não resisti de correr naquela imensidão de olhos fechados sem medo de bater em alguma coisa.
Fazendo nosso próprio caminho


 Depois de muitas horas no chão duro do deserto lá na frente se aponta um novo filete de estrada, era sinal que estávamos chegando na cidade de Dikhil.

Dikhil, Djibouti


Certo que naquela ocasião eu estava extremamente tímido, mas o lugar era intimidador. Lugar feio onde todos te olham de rabo de olho, e nem mesmo as crianças que normalmente na África ficam curiosas pra te abordar estavam muito interessadas. As pessoas ali não gostam de fotos, tirar fotos de coisas é mal visto, tirar fotos de pessoas, uma ofensa grave. Como um todo fiquei muito acuado e com medo de tudo ali. Andando pela cidade um senhor muçulmano de meia idade já veio esbravejando com o guia, o guia era da região, ou pelo menos da mesma etnia da cidade, os Afar, e mesmo não entendendo nenhuma consegui entender claramente do que a conversa se tratava. O velho muçulmano gritava e apontava pra gente furiosamente, e o guia respondendo em tom de desculpa, só me lembro que no final ele disse “eadhar, eadhar”  que significa “Desculpas” em árabe, e o velho disse algo, apontou pro céu e no meio da frase um sonoro “Allah” foi dito. O que deu a entender que a briga era pela gente estar ali e não sermos muçulmanos e ele clamando ao guia que vendeu sua alma pra esses gringos hereges o perdão supremo de Allah.

Nada confortável de estar ali



Á partir daquele momento queria sair daquela cidade o mais rápido possível, não tava nem um pouco legal aquilo ali. E mesmo depois o guia dizendo que ele era um velho louco e bêbado, não colou muito pra mim não.

De volta ao carro passamos mais algumas horas por uma vila onde as pessoas já eram mais amistosas e as crianças felizes por nossa presença. Mas eu estava tão tenso, que infelizmente não pude dar a atenção que elas mereciam, mas era de fato crianças adoráveis e faladoras de Francês.

A última vila antes do Lago

Já eram umas quatro da tarde quando começamos a chegar próximo à região do lago. Daí eu percebi que o interessante do lugar não era o lago em si, mas sim as formações rochosas da região. Uma coisa incrível e ao mesmo tempo bizarra. Incrível como a natureza esculpiu essas saliências no meio da terra.

Alguns quilômetros antes o cenário já muda


A experiência mais próxima de estar na lua. Chegando ao acampamento, um clima novo apareceu, havia “bastante” turistas ali, uns 15 pelas minhas contas. Iríamos dormir numa casa tipicamente Afar, um charme só, e também uma experiência única. Mal sabia eu que milhões de pernilongos iriam me incomodar à noite e não dormiria nada naquele dia.

Minha Hut minha vida.


Finalmente já ao fim da tarde a recompensa, o melhor por do sol que já vi, o sol escondendo por de trás das “Chimneys” e o lago ao fundo, um cenário bizarro e lindo ao mesmo tempo. Um tempo para pensar na vida e no futuro observando o sol se por. Lindos momentos guardados na memória.

Por do sol no Lac Abée


No dia seguinte, uma caminhada para observar as atrações do lugar, aparentemente a região era um enorme vulcão a milhões de anos atrás, e ali ainda possui alguns gêiseres, fumaroles  e mudpots, lembrei de Yellowstone na hora. Algumas fotos em cima das Chimneys e logo em seguida visitar o lago, que curiosamente é o as pessoas menos se interessam ali.

Chimneys everywhere


Foi difícil chegar, porque próximo ao lago a lama já começa a incomodar e por mais que pareça perto quando se olha de longe, era muito longe para ir a pé. Mas mesmo assim insisti e cheguei bem na bordinha do lago. Lago esse que é habitado por incontáveis flamingos. Um jato de cores maravilhoso pra mim  que já estava a 3 dias apenas vendo tons terrosos.

O lago

A água azul, um marrom escuro da lama e o rosa dos flamingos fazia tudo ainda mais mágico. Difícil foi voltar, aparentemente mais longe que a ida e com muito mais lama. Depois que o trecho de lama passou, voltei a brincar de andar sem medo de olhos fechados pra ver se o tempo passava mais rápido, e até que adiantou.

Lac Abée com flamingos ao fundo



Era hora de deixar o lago, e nosso próximo destino seria outro lago, o Lac Assal. Fizemos todo o caminho de volta até chegar bem perto da capital onde tomamos uma outra entrada pra passar pelo Golfo de Tadjoura e chegar ao lago. Várias e várias horas depois, estávamos lá.

Caminho de volta


Esse Lago também é igualmente bizarro e cheio de fatos interessantes. Primeiro, é o ponto mais baixo de toda África, e terceiro ponto mais baixo do mundo, só perde para o Mar Morto e para a Fenda Subglacial Bentley na Antártida. 

Mais macacos

Segundo, é o lago mais salgado do mundo. O nível de salinidade ali é tão alto que não só o peixes não vivem ali, absolutamente nada vive ali, nem as pessoas. O lago é 10x mais salgado que o mar morto, é algo insano (mas legal). Pra chegar à beira do lago é necessário passar por uma “prainha”, que em vez de areia é sal mesmo. Faz um “creck creck” gostoso quando se pisa. E quando se é pra ser hipster, que seja hipster direito, eu e Robert fomos fazer um piquenique à beira do lago. Infelizmente não havia toalha, então tive de sentar no sal do chão mesmo.

Lac Assal de longe


A mancha na minha bermuda nunca mais saiu, a parte onde estava a mancha o tecido endureceu. Magnifico. O lugar pode parecer sem vida e matador, mas a cor da água e o visual é lindo, não é mesmo?

Parece charme, mas é pisando gostoso no sal pra ver o barulho

Saindo dali, era o fim do tour, voltamos à capital, mais problemas pra sacar dinheiro e encontrar um hotel bom. Por sorte conseguimos um que era excelente, pelo menos tinha de tudo que eu precisava, uma cama boa, ar condicionado e internet (e fiquei muito surpreso como a internet ali funcionava até que bem). O dono do hotel já era um senhor mais velho e super simpático, disse que os últimos brasileiros que se hospedaram ali foi há 20 anos atrás. Ser brasileiro nessa hora é uma grande vantagem, todos ali nos olhavam com bons olhos e eram muito gentis. Depois de tantas agonias e hostilidades no interior do Djibouti eu estava extremamente carente de ver pessoas simpáticas ao meu redor.

Tomando um Coca no Lac Assal

Os dias que nos restaram no Djibouti foram desastrados. Tudo que tínhamos planejado não deu certo. Íamos mergulhar no Golfo de Tadjoura com snorkel e ver o tubarões baleia que cercam ali na época, mas o Robert não acordou no horário certo e perdemos. Íamos a uma ilha próxima no dia seguinte, mas os barcos só voltavam uma semana depois. Não tínhamos outra opção a não ser explorar a própria capital, que por si só não tem muita coisa pra ver, mas acabamos inventando coisas pra fazer.

Meio do nada

Em países nada turísticos como o Djibouti, não existe uma opção de hospedagem meio termo. Ou você fica no Sheraton ou fica na “casa do Habbibs chulé”, claro que vou ficar na segunda opção, e mesmo tendo achado um hotel que me agradava em muitos aspectos, faltava sempre alguma coisa.
Mas um dia fomos visitar o Sheraton, onde a piscina e bar é aberta para não-hóspedes. Há um forte esquema de segurança pra entrar no Hotel (e em absolutamente qualquer outro estabelecimento do país, onde você é sempre revistado) e senti uma clara diferença de tratamento em mim (branco e ocidental) com um hóspede negro e muçulmano atrás de mim, preconceitos da vida. Passei uma noite na piscina do Sheraton confortavelmente e logo após fomos a um restaurante Japonês (sim, hahah) que existia ali perto, o olho da cara, e comi beeem pouco, mas valeu a experiencia.
A cidade do Djibouti tem muitos pontos com esgoto a céu aberto, voltávamos da rua com os pés completamente imundos de todo tipo de sujeira, e dava dó de ver as moças de limpeza do hotel limpando o chão, pq toda hora alguém faz um rastro de sujeira por ali.

Golfo de Tadjoura

Disso aconteceu uma anedota interessante. Ao sair do banho do banheiro para o quarto, senti falta de um tapetezinho pra enxugar os pés e não molhar o quarto. Além de que estava com muito nojo de todos os lugares que andei pisando. Tempos depois descobri um tapete (lindo inclusive) em cima da TV e logo pensei, “a moça da limpeza esqueceu aí”, dias e dias se passaram e eu e o Robert esfregando o pé de rua nojenta no tapete. Um belo dia deitado na cama do hotel vejo que no teto há uma seta indicando uma direção. Depois descobri que essa seta existe em todos os hotéis da região, e mostram a direção de Mecca, onde todos os muçulmanos devem orar 5 vezes ao dia. E onde que eles oram mesmo? Sim! EM CIMA DE UM F*CKING TAPETE! Mais que depressa tentei lavar a sujeira imensa que tinha feito naquele tapete e coloquei de volta em cima da TV como se absolutamente nada tivesse acontecido. Sorte nossa os donos do hotel terem adorado a gente.

Cruzando estrada

Com o tempo passando vi que o povo Djiboutiano é uma confluência de muitas coisas. De Africanos, de Árabes, de Franceses e do povo Afar. Um povo que a princípio não vai muito com sua cara. Mas que logo logo se mostra um povo muito cordial. Se eu baseasse minha visita ao Djibouti apenas pelos primeiros 3 dias, teria odiado visitar ali. O tempo foi passando, meu coração amolecendo e vi que é um dos povos mais gentis que já conheci. Bendito dia aquele em que acordei no meio de um voo, olhei na tela e vi que estávamos sobrevoando um lugar que me chamou atenção futuramente. Este é o Djibouti. A terra onde a bizarrice e contraste é regra.
Por do sol 

terça-feira, 8 de março de 2016

O Dia mais Hipster da minha vida



A vida dentro de um avião não é fácil. É um momento muito diferente da rotina de muita gente. Naqueles longos e incômodos voos onde vc fica  horas torcendo para chegar logo, dorme um pouco, finge estar na fila do banheiro com pretexto pra esticar as pernas, faz tudo o mais devagar possível para que o tempo passe logo. O ar é incômodo, o banco da classe econômica é apertado e tudo parece mais chato e incômodo que o normal. Ás vezes me sinto um estranho dentro daquelas caixas voadoras, tudo ali é diferente do meu mundo. Minha rotina de vida normalmente é muito frenética, tudo que posso fazer rapidamente, o faço, tentando aproveitar mais o tempo possível. Cinco minutinhos para qualquer coisa que seja é um tempo precioso no meu dia-a-dia. Mas numa viagem longa de avião, Cinco minutos, cinquenta minutos, cinco horas é pouco.

Num desses longos momentos de agonia em aviões em 2013, estava sobrevoando algum lugar no Corno da África, num lugar onde imaginava ser o sul da Arábia Saudita ou o Iêmen. Quando olhei no mapinha de localização do avião para ver onde estava, notei que estava sobrevoando o Djibouti. Já sabia que o país existia, mas nunca tinha pensado com muita ênfase como ele seria. Naquele momento me surgiu uma vontade imensa de descer do avião num paraquedas e pousar nesse pequeno país, só pra saber o que teria ali. Mal sabia eu que um ano depois estaria de fato indo, de fato, pra lá. 


O dia era 31 de dezembro. Véspera de ano novo. Depois de passar alguns dias em Addis, resolvi ir para o Djibouti. Por ser um país pequeno não se fala muito dele nos livros do Lonely Planet, aprendi o básico que deveria saber sobre o país, fechei o hotel e outras pequenas coisas e fui. Mas mais “na cara e na coragem” do que o normal, não sabia o que esperar ali.
O voo partiu de Addis à tardinha, seria uma viagem curta. Uma breve parada em Dire Dawa, também na Etiópia,e a paisagem já mudou completamente. Árvores, arbustos e verdes, muito comuns na região central da Etiópia começaram a ficar mais esparsos. Até dar entrada a um deserto por assim dizer. O avião parte de Dire Dawa atrasado e pousa na capital, a cidade do Djibouti, já com as luzes da noite. Saindo do avião, aquele cheiro de mar imediatamente aparece e me faz lembrar que estou às beiras do mar vermelho em meio ao golfo de Aden.

Chegando...

Próxima missão, visto Djiboutiano. Um terror conseguir um visto naquele aeroporto. Mil pessoas se amontoam pra pegar um formulário para preencher e sair dali o mais rápido possível, o saguão principal estava infestado de insetos voadores (de noite) enquanto um cara numa escrivaninha responsável pelos vistos atendia a todos beeeem lentamente. Com nenhuma informação sobre que procedimentos deveria seguir, fiz tudo errado umas duas vezes e fui o último a sair do aeroporto naquela noite. Pelo menos não tive muitas dificuldades para entrar no país.

Próxima missão, sacar dinheiro! O único caixa eletrônico do aeroporto na aceitava nenhum de meus cartões, um desespero foi crescendo e possibilidades de mendicância começaram a ficar mais plausíveis quando comecei a raciocinar um pouco. O dinheiro do Djibouti é o Franco Djiboutiano, daquelas moedas de alguns países com vários zeros. Meu cartão tinha dado errado porque acabei confundindo na hora de calcular quanto devia sacar. Acabei empolgando em digitar zeros e estava tentando sacar algo equivalente a uns cem mil reais, óbvio que não ia dar.

Problema resolvido, hora de sair do aeroporto, logo na porta de saída um simpático senhor, lá pelos seus 50 e tantos, em seu traje Jalabiyah nos aguardava e nos fez uma proposta de serviço de taxi um pouco desfavorável. Mas já estava de noite, num país estranho, estava morto de cansaço, e tenso com tantas novidades e acabei aceitando. Á partir desse momento comecei a entender melhor como as coisas funcionavam por ali. A primeira coisa que me faz desanimar de visitar um país é a segurança, se o país está em guerra ou passando por revoluções. Mas a segunda coisa que mais odeio em visitar países é justamente o contrário, o excesso de procedimentos de segurança. Policiais te parando em todos os lugares, ser revistado pra entrar em qualquer estabelecimento, e todos olhando torto. 

Essa foi a primeira impressão que tive do Djibouti.
Do caminho do aeroporto até o hotel, nos pararam três vezes, e o senhor motorista teve de sair do carro e conversar bastante com os policiais para tentar explicar o que diabos estávamos fazendo ali. A comunicação é um pouco falha, porque ninguém ali fala inglês. O Djibouti foi uma colônia francesa, e o Francês é uma das línguas oficiais, além do Geez, Amárico e do Árabe (maioria). E em geral, pessoas de países francófonos na Africa não perdem tempo aprendendo inglês.
Djibouti city durante o dia


Chegando no hotel, fiquei mais aliviado por ter finalmente um pequeno refúgio, um hotel bem simples, mas satisfatório. O Djibouti, por ser um país pouco visitado tem poucas opções de hospedagem, ou você fica no hotel simples que todos os locais vão, ou fica no Sheraton pagando 300USD a diária. Mesmo estando à noite, estava bastante calor. O Djibouti é conhecido por ser um lugar muito quente, pra minha felicidade, fui durante o inverno, e as coisas estavam apenas quentes, como em BH no verão. 

Depois de ajeitar as coisas, fui dar uma passeadinha e explorar um pouco a cidade. Passando por algumas ruelas escuras, chão de terra, esgoto a céu aberto, algumas pessoas na porta de casa conversando. Andando fui até uma das ruas principais. Apesar de estar por volta das 21, a rua estava completamente lotada. Os dois lados que cercavam a rua estavam armadas lojinhas improvisadas vendendo diversos produtos, principalmente tecidos e frutas, mulheres vestidas com panos coloridos passando pelos lados, homens com coisas aparentemente pesadas equilibradas na cabeça, grupinhos de homens conversando nas esquinas, mulheres muçulmanas pechinchando por melhores preços na banca de frutas, uma riqueza de detalhes lindos que nunca vou esquecer. Aquela muvuca de gente, num país distante, me olhando esquisito, com todo aquele cenário clichê de mercado africano noturno, me encantava. Me arrependo amargamente de não ter levado a câmera, aquela cena está no meu top 5 de melhores experiências em viagens. Ainda estava um pouco assustado com as coisas no país, mas deslumbrado com aquela cena, e muito feliz.

Principal mesquita de Djibouti city


No dia em questão não consegui atravessar até o ponto da cidade onde eu queria, para um restaurante que me indicaram, porque havia uma barreira policial. O policial disse algo em francês que não entendi, mas foi claro que dali eu não passava. Dei meia volta, respirei dando mais uma olhada naquela linda feira e as pessoas passando, olhei o minarete de uma mesquita ao lado, (o principal da cidade) e resolvi voltar ao hotel, passei em um supermercado pra comprar algumas coisas e me deparei com uns biscoitos locais com nomes estranhos e com tradução para o inglês, Frances, árabe e português. Claramente feito para se vender na África. O português com vários erros, mas ainda sim foi divertido. Segue as imagens:


Vai um Bório ae?

Teria de dormir cedo porque tinha fechado uma excursão para o interior do país no dia seguinte e teria de acordar cedo. O país só se visita com tours. Não há transporte público entre as cidade. Voltei ao hotel decidido a passar o réveillon lá mesmo. Já que ele tinha restaurante. E naquela noite de 31 de dezembro de 2014, estava eu, em um terraço que mais parecia uma laje, de um hotel simples na Cidade do Djibouti, pedindo um prato que não fazia ideia do que viria e tomando um Coca-cola com logomarca em Árabe. A virada aconteceu, e me senti o cara mais Hipster do mundo por estar ali. Feliz e curioso para ver o que os dias a seguir me destinavam. E minhas impressões sobre o país que no começo eram ruins, foram só melhorando ao longo dos dias. 

: )

Dormindo no simples hotel

domingo, 21 de fevereiro de 2016

A manhã seguinte

Viajar de avião atualmente é uma das formas mais rápidas para de deslocar em entre lugares distantes. Tão rápido que parece que você foi teleportado de um lugar para outro. Cada cidade tem sua vibe, seu clima. Mudar de ares assim drasticamente é um choque para quem viaja, até mesmo viajando para cidades no mesmo país. Portanto, não acho que a aclimatação e a adaptação ao fuso horário seja a única parte adaptativa a ser feita quando vc chega a um lugar diferente. Demora um certo tempo até vc entrar no clima e no ritmo da cidade. Depois de um certo tempo, você praticamente se torna parte dela. Como se você fosse uma célula rítmica em síncope, querendo se tornar a tempo. Ou como costumo dizer: "demora um certo tempo para você perder o 'enjôo de invocação' ''; referência dada ao jogo de Magic, onde uma criatura recém-invocada, demora um round até poder atacar e usar alguns tipos de habilidade, a menos que ela possua "Ímpeto".



Na manhã seguinte, eu me sentia com "Ímpeto". Um fogo de querer sair logo e conhecer mais coisas novas dessa linda cidade brotava por dentro. As coisas pareciam menos novas e incógnitas, e alguns receios que tenho toda vez que estou em algum lugar desconhecido já estavam sumindo. Já sabia a hora que o Rober iria acordar, já sabia a hora que o chamado para a oração na Medina iria acontecer (A maravilhosa melodia na escala desconhecida), já sabia onde era o café da manhã e já sabia mais ou menos por onde iríamos durante o dia, com um mini mapa mental de "pra lá do que fomos ontem do cara que carregava 2 bodes numa bicicleta" e "uns 10 quarteiroes pra lá seguindo aquela rua que parecia ser perigosa".

A Medina ao lado do Hotel


Depois de tudo feito, pé na estrada, o primeiro destino seria o "The Museum of the Institute of Ethiopian Estudies". Um museu que se localiza dentro na Universidade de Addis. Achei interessante não só pelo Museu em si, mas porque teria a oportunidade de visitar uma Universidade ali e ver como é a rotina dos estudantes naquele país. 
Passadas diversas ruelas que no Brasil seriam consideradas "feias  e perigosas", mas que pro contexto etíope significam "cheias de vida", cheguei à Universidade de Addis, um lugar realmente bonito, verde e bem cuidado, que mais lembra um parque do que uma universidade. Logo de cara, encontrei uma quadra onde alguns estudantes estava jogando vôlei, sem nenhuma platéia. Sentei para assistir por uns minutos na esperança que eles precisassem urgentemente de um meio-de-rede, mas foi em vão.
Logo em seguida, procurei o museu, um lindo prédio com arquitetura neoclássica maravilhoso (obviamente me perguntei como esse tipo de arquitetura existia aqui antigamente, mas ao longo da viagem parei de me perguntar coisas assim, pq descobri que a Etiópia é muito mais Européia arquitetonicamente que o Brasil, por exemplo).
 paguei a entrada, e tive mais uma vez um banho de quanto o país é rico de culturas e etnias diferentes. Alguns quadros, vídeos, artefatos estranhos, jogos típicos, rituais de tradições, itens espalhafatos, estátuas, espadas, café, itens de antigos reis. Tudo junto e misturado. Misturado não. Apenas junto. O museu é curiosamente bastante organizado.
Acredite ou não, são travesseiros típicos

Não pude deixar de demorar um pouco mais na parte dos instrumentos musicais do país. E mais uma vez um banho de riqueza cultural. Idiofones, Membranofones, Cordas, sopros e outros que não conhecia, mas creio que seja um idiofone típico.
Uma pequena parte da ala de instrumentos musicais

 Mais ao fim do passeio, entrei em uma ala nova do museu e me dei conta de onde estava e o porque esse museu era tão pomposo arquitetonicamente. Aqui era o antigo palácio do Imperador Haile Selassie!  Havia a sessao do museu que era os aposentos do antigo Imperador. Foi maravilhoso estar no palácio real, ver a cama real (pequena), o banheiro real (com uma moderna banheira), 
Aqui cabe um parêntesis muito importante para falar um pouco sobre esse Imperador.
O Imperador Haile Selassie é uma figura muito interessante pra história da Etiópia e da África como um todo. Nasceu como o nome de Tafari Makonnen, e ao chegar ao poder, com o título de regente da Etiópia em 1916, recebeu o nome de Rei Tafari, ou em etíope Ras Tafari! Perae, Rastafari? O_O"
De onde veio tudo isso? Bom...

Haile Selassie em 1960

Existe (ou existiu, ou interpretação louca) uma profecia bíblica de que o Messias seria o primeiro Regente Africano de um país totalmente livre. E de fato, na época, todos os países africanos estavam sob colonização européia, e a Etiópia (assim como a Libéria, mas a Libéria mesmo não sendo colonizada, nunca teve muita autonomia) foi o único país africano não-colonizado. Haile Selassie despontou como o "primeiro regente africano dos novos tempos" e virou o novo Messias da nova religião criada, o Rastafarianismo. Criada na Jamaica, por descendentes africanos que possivelmente nunca viriam o Messias pessoalmente. Se espalhou pela Africa rapidamente e hoje possui quase um milhão de seguidores pelo mundo. Principalmente na Jamaica e no Sul da Etiópia. Uma das práticas religiosas é o uso da Maconha, não para diversão de balada ou para cursar letras ou biologia na UFMG, mas como um ritual de purificação. E o uso de dreadlocks, muito comum na Jamaica na época, virou marca registrada na religião. Ou do estilo de cabelo no Brasil.


O cantor Jamaicano Bob Marley, que certamente foi o mais expoente divulgador do Rastafarianismo, falando em suas músicas sobre os costumes, as crenças, as roupas e todas as ideologias da religião.


O legal é que o próprio Haile Selassie desprezava profundamente os Rastafari e/ou aqueles que o julgavam uma divindade, considerava-os loucos e incômodos. Como Regente e Imperador da Etiópia tentava a todo custo lidar com toda a tensão de conflitos étnicos no país, mas como um todo foi muito criticado, pois sempre favorecia a um ou outro. Era fissurado em modernidade, e ficou encantado com a invenção da cadeira elétrica nos Estados Unidos e logo encomendou três unidades. Meses depois, as cadeiras chegaram a Etiópia de navio (na época que a Etiópia ainda tinha uma linha costeira :(    ), mais alguns meses para levá-las a Addis, até finalmente elas chegarem àquele palácio, que hoje museu, onde eu estava. Haile Selassie abriu a caixa como uma criança na manhã de natal e depois de muito não enteder como aquilo funcionava, percebeu que a Etiópia na época não possuia eletricidade. Governou de 1916 a 1974, com alguns golpes aqui e ali, mas em geral, continuamente. Só teve uma interrupção em 1930 quando os patriarcas ortodoxos etíopes julgaram que este tinha se convertido ao islamismo, mas rapidamente ele retorna ao poder, daí trocou de nome de Rastafari Makkonen para Haile Selassie e o título de regente para Imperador. E outro breve momento em que ele perdeu o poder foi em 1960, quando o Imperador estava curiosamente visitando o Brasil, quando alguns opositores tomaram poder na Etiópia. Ao saber da notícia, Haile Selassie voltou às pressas pra Etiópia prometendo retornar ao poder sem derramar uma só gota de sangue. E foi o que ele fez, retornou ao poder e mandou enforcar a todos os opositores.

Saindo do museu, vc dá de cara com essa estrutura, construída na época da ocupação italiana, cada degrau representava alguma coisa dos passos de Mussolini. Quando a Etiópia recuperou sua soberania, foi colocado acima da estrutura, um leão de Judá, símbolo da Etiópia.
Estrutura construida pelos italianos na época da ocupação e modificada pelos etíopes com um Leão de Judá anos depois

O próximo passo seria a visita à Holy Trinity Cathedral. A segunda mais importante igreja ortodoxa etíope. O lugar é lindo e fica no meio de um parque, sempre bem arborizado. Rodeando a catedral vc percebe diversas esculturas dos doze apóstolos, Anjos, alguns santos e etc. E foi daí que eu percebi que a diferença da igreja ortodoxa da católica é muito pequena. Entrei na igreja no meio de uma cerimônia que adoraria muito ter filmado (se eu pudesse). Diversos sacerdotes cantando uma melodia e outros repetindo, e outros fazendo outra linha melódica totalmente diferente, mas de certa forma organizada com a primeira. Eu como músico sempre tendo a tentar encaixar formas musicais de outro país na forma ocidental de fazer música e a definição mais próxima que encontrei foi "uma polifonia, onde cada uma das vozes, por sua vez, segue uma heterofonia por três vozes diferentes." Parece muito louco tentar imaginar isso. Mas tudo soa muito conciso. No meio daquela loucura de escutar o canto e apreciar o ritual, me senti incomodado de estar ali fazendo coisa errada numa religião que não conheço. Um etíope ao meu lado estava gentilmente me indicando um lugar pra guardar meu calçado. A hora que tinha de ajoelhar e levantar, e etc. Nada muito diferente de um ritual católico, mas aquilo parecia muito diferente pra mim na época.

Holy Trinity Cathedral

Saindo dali e explorando um pouco o parque, já estava de tardinha e voltamos ao hotel. Percebendo que fizemos todo os percussos a pé. Uma longa distância, que me deixou bem cansado. Mas preferi isso do que sofrer um golpe de um taxista.
Ao chegar no hotel, tomar um banho reconfortante, comer algo fui logo dando uma olhada no que tinha pro dia seguinte. Por questões de logística decidi visitar o novo país e depois regressar à Etiópia para uma visita ao interior do país. No dia seguinte estaria partindo para o mais diferente e tenso país que já visitei, o Djibouti. Em adição a isso, o dia seguinte era 31 de dezembro. O que significaria que passaria o reveillon no Djibouti. Uma maneira bem indie de se passar um reveillon, não?
Próximo post eu falo sobre o Djibouti. Até lá! ; )