sábado, 2 de abril de 2016

Lagos bizarros, agonia e Paz

Reveillons em geral por mais diferentes que sejam quase sempre tem coisas em comum... Comemorar, abraçar as pessoas queridas a sua volta, planejar coisas pro novo ano e... Acordar tarde no dia 1º de Janeiro. Mas infelizmente não foi o que aconteceu. Fiquei imaginando como estaria Araújos. Primeiro de Janeiro é aniversário da cidade, desse vez, bem distante de mim.
Aeroporto de Djibouti

Naquele primeiro de Janeiro acordei com batidas fortes na porta do quarto, e no susto, abrindo o gerente do hotel balbuciando algo em árabe e apontando para a porta. Logo saquei que era sobre a equipe da excursão que ia fazer para o interior do Djibouti já estava me aguardando na porta. Mais que rapidamente amontoei tudo que estava fora da mochila o mais rápido que pude e partimos logo cedo saindo da capital. Julgo que não eram nem 6:30, mas já estávamos partindo, e eu sem café da manhã. Na vida fora de viagens, eu como sempre de 3 em 3 horas, malho todos os dias, e tento sempre fazer um “projeto boy magia” a cada semestre que sempre é quebrado quando estou viajando, já que em viagens sempre acabo não malhando nem comendo bem. Mas questões estéticas à parte, os primeiros dias de viagem são sempre complicados em relação à comida. Nem sempre eu posso comer na hora que quero, nem o tipo de nutriente que quero, visto que proteínas e fibras são difíceis de serem encontradas de forma fácil. E você sempre acaba comendo muito açúcar e gordura, querendo ou não. Mas pior do que comer mal é não comer (o que acontece frequentemente em viagens) e sorte minha que tinha comprado por curiosidade os biscoitos com nomes bizarros no dia anterior, esse foi bem desjejum do dia. Qualquer progresso de academia que eu porventura tenha ganho naquele semestre volta ao zero no fim da viagem, daí você quando você volta, volta a malhar e o ciclo começa novamente.

Região interiorana


O Destino era o Lac Abée, um lago com formações rochosas bizarras ao seu redor, lago este que metade é do Djibouti e metade da Etiópia. A lógica diria que se eu já estava na Etiópia, por que não ir diretamente por lá? Simplesmente porque é impossível, ou pelo menos extremamente difícil e perigoso, teria de cruzar um mega deserto por dias numa região perigosa, realmente não valia a pena. Além de tudo, o Djibouti não é um país particularmente cheio de atrações turísticas e o Lac Abée é certamente um lugar obrigatório pra quem vai ao país. Visitar o Lac Abée pelo Djibouti também não é nada fácil e barato. Depois que você sai da capital, o deserto logo vem, você passa por algumas regiões cheias de pedra, e o caminho do deserto não é particularmente interessante, mas fiquei surpreso quando vi MACACOS do deserto ali. Sim! Também fiquei surpreso. 
Macacos do deserto

Depois de um breve período de asfalto e um longo período de estrada de chão, a estrada acaba e você pensa que é o fim da linha. Mas nada. O 4x4 entra no meio do deserto e faz seu próprio caminho à partir dali, um leve medinho de imaginar ficar preso naquela imensidão de nada. O deserto naquela região é diferente do que imaginava, não tem muita areia. É basicamente um chão duro infértil. O carro para para algumas fotos naquela imensidão plana e sem obstáculos, e eu, com a criança que sou, não resisti de correr naquela imensidão de olhos fechados sem medo de bater em alguma coisa.
Fazendo nosso próprio caminho


 Depois de muitas horas no chão duro do deserto lá na frente se aponta um novo filete de estrada, era sinal que estávamos chegando na cidade de Dikhil.

Dikhil, Djibouti


Certo que naquela ocasião eu estava extremamente tímido, mas o lugar era intimidador. Lugar feio onde todos te olham de rabo de olho, e nem mesmo as crianças que normalmente na África ficam curiosas pra te abordar estavam muito interessadas. As pessoas ali não gostam de fotos, tirar fotos de coisas é mal visto, tirar fotos de pessoas, uma ofensa grave. Como um todo fiquei muito acuado e com medo de tudo ali. Andando pela cidade um senhor muçulmano de meia idade já veio esbravejando com o guia, o guia era da região, ou pelo menos da mesma etnia da cidade, os Afar, e mesmo não entendendo nenhuma consegui entender claramente do que a conversa se tratava. O velho muçulmano gritava e apontava pra gente furiosamente, e o guia respondendo em tom de desculpa, só me lembro que no final ele disse “eadhar, eadhar”  que significa “Desculpas” em árabe, e o velho disse algo, apontou pro céu e no meio da frase um sonoro “Allah” foi dito. O que deu a entender que a briga era pela gente estar ali e não sermos muçulmanos e ele clamando ao guia que vendeu sua alma pra esses gringos hereges o perdão supremo de Allah.

Nada confortável de estar ali



Á partir daquele momento queria sair daquela cidade o mais rápido possível, não tava nem um pouco legal aquilo ali. E mesmo depois o guia dizendo que ele era um velho louco e bêbado, não colou muito pra mim não.

De volta ao carro passamos mais algumas horas por uma vila onde as pessoas já eram mais amistosas e as crianças felizes por nossa presença. Mas eu estava tão tenso, que infelizmente não pude dar a atenção que elas mereciam, mas era de fato crianças adoráveis e faladoras de Francês.

A última vila antes do Lago

Já eram umas quatro da tarde quando começamos a chegar próximo à região do lago. Daí eu percebi que o interessante do lugar não era o lago em si, mas sim as formações rochosas da região. Uma coisa incrível e ao mesmo tempo bizarra. Incrível como a natureza esculpiu essas saliências no meio da terra.

Alguns quilômetros antes o cenário já muda


A experiência mais próxima de estar na lua. Chegando ao acampamento, um clima novo apareceu, havia “bastante” turistas ali, uns 15 pelas minhas contas. Iríamos dormir numa casa tipicamente Afar, um charme só, e também uma experiência única. Mal sabia eu que milhões de pernilongos iriam me incomodar à noite e não dormiria nada naquele dia.

Minha Hut minha vida.


Finalmente já ao fim da tarde a recompensa, o melhor por do sol que já vi, o sol escondendo por de trás das “Chimneys” e o lago ao fundo, um cenário bizarro e lindo ao mesmo tempo. Um tempo para pensar na vida e no futuro observando o sol se por. Lindos momentos guardados na memória.

Por do sol no Lac Abée


No dia seguinte, uma caminhada para observar as atrações do lugar, aparentemente a região era um enorme vulcão a milhões de anos atrás, e ali ainda possui alguns gêiseres, fumaroles  e mudpots, lembrei de Yellowstone na hora. Algumas fotos em cima das Chimneys e logo em seguida visitar o lago, que curiosamente é o as pessoas menos se interessam ali.

Chimneys everywhere


Foi difícil chegar, porque próximo ao lago a lama já começa a incomodar e por mais que pareça perto quando se olha de longe, era muito longe para ir a pé. Mas mesmo assim insisti e cheguei bem na bordinha do lago. Lago esse que é habitado por incontáveis flamingos. Um jato de cores maravilhoso pra mim  que já estava a 3 dias apenas vendo tons terrosos.

O lago

A água azul, um marrom escuro da lama e o rosa dos flamingos fazia tudo ainda mais mágico. Difícil foi voltar, aparentemente mais longe que a ida e com muito mais lama. Depois que o trecho de lama passou, voltei a brincar de andar sem medo de olhos fechados pra ver se o tempo passava mais rápido, e até que adiantou.

Lac Abée com flamingos ao fundo



Era hora de deixar o lago, e nosso próximo destino seria outro lago, o Lac Assal. Fizemos todo o caminho de volta até chegar bem perto da capital onde tomamos uma outra entrada pra passar pelo Golfo de Tadjoura e chegar ao lago. Várias e várias horas depois, estávamos lá.

Caminho de volta


Esse Lago também é igualmente bizarro e cheio de fatos interessantes. Primeiro, é o ponto mais baixo de toda África, e terceiro ponto mais baixo do mundo, só perde para o Mar Morto e para a Fenda Subglacial Bentley na Antártida. 

Mais macacos

Segundo, é o lago mais salgado do mundo. O nível de salinidade ali é tão alto que não só o peixes não vivem ali, absolutamente nada vive ali, nem as pessoas. O lago é 10x mais salgado que o mar morto, é algo insano (mas legal). Pra chegar à beira do lago é necessário passar por uma “prainha”, que em vez de areia é sal mesmo. Faz um “creck creck” gostoso quando se pisa. E quando se é pra ser hipster, que seja hipster direito, eu e Robert fomos fazer um piquenique à beira do lago. Infelizmente não havia toalha, então tive de sentar no sal do chão mesmo.

Lac Assal de longe


A mancha na minha bermuda nunca mais saiu, a parte onde estava a mancha o tecido endureceu. Magnifico. O lugar pode parecer sem vida e matador, mas a cor da água e o visual é lindo, não é mesmo?

Parece charme, mas é pisando gostoso no sal pra ver o barulho

Saindo dali, era o fim do tour, voltamos à capital, mais problemas pra sacar dinheiro e encontrar um hotel bom. Por sorte conseguimos um que era excelente, pelo menos tinha de tudo que eu precisava, uma cama boa, ar condicionado e internet (e fiquei muito surpreso como a internet ali funcionava até que bem). O dono do hotel já era um senhor mais velho e super simpático, disse que os últimos brasileiros que se hospedaram ali foi há 20 anos atrás. Ser brasileiro nessa hora é uma grande vantagem, todos ali nos olhavam com bons olhos e eram muito gentis. Depois de tantas agonias e hostilidades no interior do Djibouti eu estava extremamente carente de ver pessoas simpáticas ao meu redor.

Tomando um Coca no Lac Assal

Os dias que nos restaram no Djibouti foram desastrados. Tudo que tínhamos planejado não deu certo. Íamos mergulhar no Golfo de Tadjoura com snorkel e ver o tubarões baleia que cercam ali na época, mas o Robert não acordou no horário certo e perdemos. Íamos a uma ilha próxima no dia seguinte, mas os barcos só voltavam uma semana depois. Não tínhamos outra opção a não ser explorar a própria capital, que por si só não tem muita coisa pra ver, mas acabamos inventando coisas pra fazer.

Meio do nada

Em países nada turísticos como o Djibouti, não existe uma opção de hospedagem meio termo. Ou você fica no Sheraton ou fica na “casa do Habbibs chulé”, claro que vou ficar na segunda opção, e mesmo tendo achado um hotel que me agradava em muitos aspectos, faltava sempre alguma coisa.
Mas um dia fomos visitar o Sheraton, onde a piscina e bar é aberta para não-hóspedes. Há um forte esquema de segurança pra entrar no Hotel (e em absolutamente qualquer outro estabelecimento do país, onde você é sempre revistado) e senti uma clara diferença de tratamento em mim (branco e ocidental) com um hóspede negro e muçulmano atrás de mim, preconceitos da vida. Passei uma noite na piscina do Sheraton confortavelmente e logo após fomos a um restaurante Japonês (sim, hahah) que existia ali perto, o olho da cara, e comi beeem pouco, mas valeu a experiencia.
A cidade do Djibouti tem muitos pontos com esgoto a céu aberto, voltávamos da rua com os pés completamente imundos de todo tipo de sujeira, e dava dó de ver as moças de limpeza do hotel limpando o chão, pq toda hora alguém faz um rastro de sujeira por ali.

Golfo de Tadjoura

Disso aconteceu uma anedota interessante. Ao sair do banho do banheiro para o quarto, senti falta de um tapetezinho pra enxugar os pés e não molhar o quarto. Além de que estava com muito nojo de todos os lugares que andei pisando. Tempos depois descobri um tapete (lindo inclusive) em cima da TV e logo pensei, “a moça da limpeza esqueceu aí”, dias e dias se passaram e eu e o Robert esfregando o pé de rua nojenta no tapete. Um belo dia deitado na cama do hotel vejo que no teto há uma seta indicando uma direção. Depois descobri que essa seta existe em todos os hotéis da região, e mostram a direção de Mecca, onde todos os muçulmanos devem orar 5 vezes ao dia. E onde que eles oram mesmo? Sim! EM CIMA DE UM F*CKING TAPETE! Mais que depressa tentei lavar a sujeira imensa que tinha feito naquele tapete e coloquei de volta em cima da TV como se absolutamente nada tivesse acontecido. Sorte nossa os donos do hotel terem adorado a gente.

Cruzando estrada

Com o tempo passando vi que o povo Djiboutiano é uma confluência de muitas coisas. De Africanos, de Árabes, de Franceses e do povo Afar. Um povo que a princípio não vai muito com sua cara. Mas que logo logo se mostra um povo muito cordial. Se eu baseasse minha visita ao Djibouti apenas pelos primeiros 3 dias, teria odiado visitar ali. O tempo foi passando, meu coração amolecendo e vi que é um dos povos mais gentis que já conheci. Bendito dia aquele em que acordei no meio de um voo, olhei na tela e vi que estávamos sobrevoando um lugar que me chamou atenção futuramente. Este é o Djibouti. A terra onde a bizarrice e contraste é regra.
Por do sol